Existe uma lógica de funcionamento no teatro de boulevard francês que se assemelha, de certo modo, às peças de teatro de shopping centers de luxo no Brasil. A estrutura cênica, nestes casos, é muito simples, já que o público busca sobretudo o elenco com nomes famosos e a crônica inofensiva de costumes. As histórias trazem pequenas farsas, identidades trocadas, quiproquós amorosos, humor físico.
O Que Eu Fiz Para Merecer Isso? segue à risca esta receita teatral. Por ser um filme francês e legendado, ele se insere no nosso circuito alternativo, mas a narrativa possui o DNA das comédias populares brasileiras com atores globais de sucesso. Nesta trama, Michel (Christian Clavier) encontra um disco de jazz que procura há muito tempo. Sua ideia é passar a tarde inteira ouvindo música, mas todos os problemas possíveis surgem em sua vida: a esposa (Carole Bouquet) tem uma revelação a fazer, a amante (Valérie Bonneton) aparece à porta, a empregada (Rossy de Palma) faz barulho demais, o filho (Sébastien Castro) traz pessoas ao apartamento...
Esse é apenas o começo da história. Uma dezena de personagens passa a orbitar em torno de Michel com problemas crescentemente absurdos e invasivos. O roteiro acredita que, quanto mais catástrofes incluir na trama, mas engraçada ela será, por isso não tem medo de esgarçar seus conflitos ao limite da lógica. O diretor Patrice Leconte tenta injetar um pouco de linguagem cinematográfica no dispositivo teatral: ele usa enquadramentos fechados e montagem ágil para atingir um olhar onisciente, presente em cada cômodo, flagrando cada novo problema de Michel. Pode ser pouco em termos de uso do tempo e do espaço, mas a comédia não tem a pretensão de inventar, apoiando-se integralmente no texto.
Para não dizer que a trama é desprovida de interesse, percebe-se neste cenário uma pequena crítica aos caprichos da burguesia francesa. Toda a Europa está presente no prédio luxuoso: a empregada é espanhola, o encanador é português, os vizinhos são poloneses ou asiáticos. Estas figuras são rechaçadas pelo casal burguês, que as acolhe em casa apenas quando é obrigado a fazê-lo. Se pudesse, manteria as portas e o acesso fechado à diferença, cujos problemas (um marido morto, a falta de uma casa para morar) parecem pequenos perto da vontade de escutar um álbum de jazz. A vida luxuosa dos privilegiados é caricaturada, mas o público não é convidado a questioná-la ou romper com a mesma. Ri-se dos ricos, com os ricos, para os ricos.
O Que Eu Fiz Para Merecer Isso? cumpre seu papel, divertindo o público com conflitos fantasistas, e relegando os problemas reais ao nível dos detalhes. É possível rir dessas histórias por sua insistência agressiva em agradar: para garantir que ninguém sairá descontente da sala de cinema, a conclusão inclusive oferece uma redenção do personagem arrogante. É um cinema essencialmente popular e inofensivo.